A obra de Cacia Valeria de Rezende se confunde com a vida de quem vive no semi-árido. A professora glorense lançou o livro “Educação no Sertão: memórias e experiências das professoras no alto sertão sergipano (1950-1970) pela Editora Diário Oficial de Sergipe - Edise no dia da sergipanidade, 24 de outubro, no Museu da Gente Sergipana Governador Marcelo Déda. O livro é resultado de dez anos de pesquisas autônomas e um mestrado sobre a memória de 21 professoras que iniciaram o processo de alfabetização naquela região.
Cacia Valeria iniciou a pesquisa em 2004 quando finalizava a graduação em Pedagogia, com uma monografia sobre a contribuição da Escola Estadual Cícero Bezerra para os moradores de Nossa Senhora da Glória. Naquele ano, ela reuniu cerca de 500 imagens que ilustravam a educação do sertanejo no século XX. A pesquisa sobre educação no sertão teve continuidade na graduação em História, que concluiu em 2007.
Após oito tentativas, Cacia Valeria conseguiu iniciar o mestrado em 2012. Até esse ano, os professores não aprovavam as ideias da glorense, que só queria falar sobre o sertão sergipano na dissertação. Para ela, o tema não fora selecionado antes porque não estava em voga. “Esse modismo nunca chegava lá na minha terra”, afirma. Cacia não abriu do alto sertão porque queria construir um imaginário positivo da região onde nasceu. Na construção da história oficial de Sergipe, diz ela, “o sertanejo fica um quanto à margem”.
A inquietação para contar as histórias de quem lida com a hostilidade do semi-árido surgiu quando a autora ainda era criança. Quem mais influenciou a trajetória da autora foi o avô. Para ela, ele era um grande contador de histórias, o que é algo natural para o povo de Glória, garante Cacia. No entanto, ela possui um medo: a tradição de contar histórias está acabando. Enquanto na infância ela ouvia histórias dos avôs e dos pais, os mais jovens não fazem isso. “Essa tradição está acabando porque as novas gerações têm contato com outras formas de interação”, diz.
Toda a história do alto sertão está na memória dos moradores, para Cacia. Poucos são os documentos e registros oficiais. Por isso, ela decidiu preencher tal lacuna, especialmente sobre a vida de professoras que abdicaram da vida pessoal para lecionar durante as secas mais severas do sertão em Sergipe. Ela queria externar um pouco do que conseguia enxergar na vida do sertanejo. Em 2014, concluiu a dissertação de mestrado em Educação que deu origem ao livro.
História Oral
A vida das 21 professoras que iniciaram o processo de alfabetização no alto sertão foi contada, principalmente, por meio da memória das próprias mulheres. No trabalho, Cacia Valeria aplicou as técnicas da “História Oral”, uma metodologia de pesquisa usada para registrar a fala de personagens que presenciaram acontecimentos importantes para uma comunidade. Só assim a autora ia garantir que a história ia ser contada pelo povo. Não pelos “grandes”.
Para chegar ao resultado que queria, Cacia teve de lidar com alguns dilemas. Algumas fontes escondiam ou mentiam nos relatos. “Um sertanejo disse para mim que quando chovia naquela época caíam peixes do céu”, revela. Ainda assim, a autora não se preocupou em contestar os relatos. “Vai tirar da cabeça dele que isso é mentira? Não”. Os relatos se aproximaram mais da realidade conforme a professora os comparava com fontes oficiais. Ela buscou o maior número possível de documentos para comparar com o relato de cada fonte.
Comparar foi a tarefa mais difícil durante a pesquisa. Sentar, escrever e comparar era um exercício difícil para a autora. Talvez esse exercício tenha sido mais difícil para Cacia por causa da dislexia, que ela só descobriu quando fazia a pós-graduação em Psicopedagogia entre 2008 e 2009. O contato com o tema fez notar que tanto ela quanto alguns membros da família têm sintomas. Só assim ela entendeu por que reprovou quatro anos na segunda série do ensino fundamental. “Eu até sabia as letrinhas, mas era como se elas dançassem e não tivessem sentido para mim”, confessa.
Os dez anos de pesquisa para fazer o livro foram necessários porque Cacia se preocupava com a quantidade de dados que ia conseguir. A atuação como professora do ensino básico também a estimulou a pesquisar sobre o tema do livro. Com os alunos, Cacia fez trabalhos de educomunicação e catalogou o nome de ex-moradores no cemitério de Nossa Senhora da Glória.
As professoras
O primeiro quesito para ser professora era ser alfabetizada. As mulheres eram selecionadas pelos políticos da região do alto sertão porque sabiam ler, escrever e tinham uma boa oratória. Depois disso, elas precisavam passar por conflitos em casa. Algumas famílias achavam imoral uma mulher entrar em contato com várias pessoas. Por outro lado, havia pais que estimulavam as filhas para o magistério. “Uma mesma cultura, entendimentos diferentes”, enfatiza Cacia. Ainda assim, para a maioria da população, o trabalho era bem visto.
As mulheres ficaram encarregadas do campo da educação, acredita Cacia, conforme o trabalho do professor se tornou precário. “Os homens se recusaram do papel deles porque ganhavam muito pouco”, afirma. A precarização na área da educação coincidiu com a ascensão da mulher no mercado de trabalho. Nos períodos das secas mais severas, a educação ficava em segundo ou terceiro lugar. Apesar disso, o magistério era a única oportunidade para a mulher ter uma renda, principalmente as mulheres do sertão. “Naquela época era só a roça”, diz Cacia.
Enquanto isso, as professoras que saíam da capital do estado para os municípios do alto sertão (Canindé de São Francisco, Gararu, Monte Alegre, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora de Lourdes, Poço Redondo e Porto da Folha) desistiam da carreira por causa da hostilidade do universo sertanejo. Uma das dificuldades era andar a cavalo, indica a autora. Além disso, as professoras das escolas rurais do alto sertão acumulavam várias funções. Elas eram professoras, diretoras e serventes das escolas.
Quem era da região do alto sertão, já estava adaptada à hostilidade do ambiente. As mulheres sertanejas também não desistiam da carreira por causa da “cultura da sina”, que, de acordo com a autora, tem a ver com a capacidade de resiliência do sertanejo. “Quando eles pegam uma missão, eles levam até o fim”, afirma. A cultura da sina, segundo Cacia, está presente tanto na mulher quanto no homem do sertão.
As educadoras seguiam a sina a ponto de abdicar das próprias famílias. Muitas não tinham como cuidar dos filhos por causa do acumulo de funções nas escolas. Chegavam em casa à noite e precisavam concluir as tarefas sob a luz do candeeiro. No livro, a autora relata o caso de professoras que misturavam açúcar com água salgada para dar aos filhos e a história de uma mãe que, após uma jornada exaustiva, encontrou o filho morto.
Aprendizado
A resistência das professoras do alto sertão influenciou Cacia Valeria da vida profissional à vida pessoal. A relação com o casamento foi um desses aprendizados. Os relatos abrangem professoras que nunca se casaram ou só conseguiram se separar na terceira idade – entre 65 e 75 anos -, uma vez que a sociedade não via com “bons olhos” as mulheres separadas. “Professora tinha que ter uma moral impecável”, afirma Cacia. Enquanto isso, outras professoras permaneceram casadas até a morte, ainda que a contragosto.
Mesmo com as condições miseráveis, as professoras que continuavam no exercício do magistério se esforçavam ao máximo. A autora de “Educação no Sertão” reconhece que os professores ainda padecem, mas admite que as condições das professoras no meio do século passado eram mais insalubres. Para interagir com os alunos, as professoras trabalhavam com música, poesia, jogral [forma de declamação de poemas, canções e frases por um coro]. Durante atividades extracurriculares no terreiro da escola, elas chamavam o único fotógrafo da região para garantir o registro. “Todo aparato, que a gente diz que é pouco, elas não tinham, mas davam uma excelente aula”, enfatiza.